sábado, 23 de novembro de 2019

A Ditadura Militar em oito filmes disponíveis no Youtube

Uma das coisas que mais gosto em minhas turmas de 9º ano é indicar livros ou filmes sobre os assuntos estudados e depois sacar que alguns e algumas estudantes foram atrás, leram os livros, viram os filmes. Dia desses a mãe de uma estudante veio me contar que foi "obrigada" a ver o filme Getúlio com a filha. Achei ótimo ela "cumprindo essas obrigações"!
Semanas atrás, trabalhávamos o período anterior ao golpe de 1964 e uma aluna aplicada pediu filmes que tivessem disponíveis no Netflix para ver no final de semana. Indiquei Flores raras, de Bruno Barreto. Infelizmente, parece que a obra não está mais disponível ali.
Como acho Netflix desnecessário diante de tanta coisa boa por ver no Youtube, vou listar aqui alguns filmes que já assisti sobre a Ditadura Militar (1964-85). Vai que alguém tenha interesse em ver.

1. O que é isso companheiro?, de Bruno Barreto (1997)
Esse foi o primeiro filme sobre o período 1964-85 que assisti. Eu era ainda acadêmico de História e, ao ser recrutado para realizar a substituição de uma professora que estava em curso de formação, tive a oportunidade de ver a obra. Estranhei um pouco o Pedro Cardoso não sendo o Agostinho Carrara mas, curti o filme. Quem quiser, que antes leia o livro de mesmo nome, do Fernando Gabeira.



2. Lamarca, de Sérgio Rezende (1994)
Em 2005 eu já possuía DVD em casa. Final de semana pegava uns três filmes na extinta Nova Locadora e mandava ver. Um desses filmes foi Guerra de Canudos, de Sérgio Rezende. Dias depois, numa dessas loja de 1,99 encontrei o Lamarca, do mesmo diretor. Gostei bastante porque tinha muito ator foda tipo Paulo Betti, Roberto Bomtempo e Carla Camuraty em grande momento.  Como O que é isso Companheiro?, Lamarca é um baita filme sobre a vigência do AI-5 e a luta armada e conta a trajetória do militar Carlos Lamarca que abandonou o exército e virou guerrilheiro. 


3. Batismo de sangue, de Helvécio Ratton (2007)
Baseado no livro de mesmo nome escrito por Frei Betto, o filme conta a resistência dos frades dominicanos paulistanos à ditadura militar . Movidos por ideais cristãos, os frades "Tito", "Betto", "Oswaldo", "Fernando" e "Ivo", passam a apoiar logística e politicamente o grupo guerrilheiro Ação Libertadora Nacional, comandado à época por Carlos Marighella. Filme tenso pacas!


4. O ano em que meus pais saíram de férias, de Cao Hamburger (2006)
Junto com Dois Córregos, de Carlos Reichenbach, O ano em que meus pais saíram de férias consegue mostrar o horror de uma ditadura com a sutileza de um furacão, como diria Rita Lee. Tendo de viajar urgentemente, um jovem casal deixa seu filho ainda menino aos cuidados do avô. O pai ainda promete voltar para ver os jogos da Copa do Mundo de 1970. O avô morre e o menino fica sob os cuidados de uma comunidade judaica. A história é ao mesmo tempo horrível e divertida. Vale muito a pena ver. 

5. Dois Córregos, de Carlos Reichenbach (1999)
Como O ano em que meus pais saíram de férias, Dois Córregos não tem muitos fuzis, fardas e coturnos mas, o pavor do período é sentido no filme todo onde três mulheres diferentes convivem com um homem que está escondido em um sítio em razão de ter problemas políticos.  Tanto esta obra como a anterior aparecem na lista dos Cem melhores filmes brasileiros de todos os tempos, organizada pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema.


6. Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho (1984)
Esse também está na lista dos Cem melhores filmes brasileiros de todos os tempos, organizada pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema. É um documentário mas, no projeto inicial seria uma ficção que trataria da vida e morte do líder camponês João Pedro Teixeira, fundador da Liga Camponesa de Sapé (PB), assassinado a mando de latifundiários em 1962. Quando o cineasta Eduardo Coutinho conseguiu recursos para a filmagem, veio o golpe de Estado e a ditadura.  Muito do material até então produzido foi apreendido assim como  membros da equipe foram presos ou tiveram de fugir. Anos depois, parte do material foi salvo e o restante da história, só vendo o filme. Uma das obras mais maravilhosas que já vi!


7. Zuzu Angel, de Sérgio Rezende (2006)
Mais um do Sérgio Rezende na lista. Esse uso em sala de aula e também está na Lista dos Cem melhores filmes brasileiros. Conta a trajetória da estilista Zuzu Angel e sua luta para encontrar o corpo do filho assassinado pela ditadura. 


8. Brizola: tempos de luta, de Tabajara Ruas (2007)
Documentário com a biografia de Leonel Brizola, que foi governador do Rio Grande do Sul
antes da ditadura e, após o exílio, também governador do Rio de Janeiro. O material é muito bacana porque trata de sua relação com o presidente João Goulart, derrubado pelo golpe de Estado de 1964 e também sua trajetória no exílio e depois, no período de redemocratização.


Faltou vários outros mas, esses aí já servem para passar o tempo e complementar os estudos sobre a História recente do Brasil.
Antes de ver os filmes, consulte a Classificação Indicativa de idade no site do Ministério da Justiça.

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Entrevista com Ilton Cesar Martins: Dizer que não há racismo no Brasil é mau-caratismo ou falta de conhecimento histórico!

Aproveitando que estamos no mês de Consciência Negra, fizemos uma entrevista sobre o assunto com um dos maiores estudiosos sobre escravidão e sobre o negro no Brasil, o professor de História da Universidade Estadual do Paraná, Ilton Cesar Martins. 

Ilton é graduado, mestre, doutor e pós-doutor em História e trabalha no campus da Unespar em União da Vitória.

Foto: Site VVale.com


Lamparyna: Professor Ilton, muito bom conversar contigo, ainda mais nesses dias do mês da Consciência Negra. Me diga, qual a importância dessas discussões que se ampliam no mês de novembro?
Ilton Cesar Martins: Essas discussões, esse assunto não é só importante no mês de novembro. Na verdade, as reflexões, perguntas, motivações sobre o negro, sobre a invisibilidade do negro no Brasil deveriam perpassar o ano todo e não somente agora, na proximidade do Dia da Consciência Negra.

Lamparyna: Ouve-se bastante por aí a contestação sobre políticas afirmativas ou cotas para negros em universidades e concursos públicos. Muitas vezes se tem a impressão de que as pessoas nem sabem direito do que estão falando. O senhor poderia explicar para nós o que são de fato essas políticas afirmativas e para que servem?
Ilton Cesar Martins: Olha, as pessoas começam muitas vezes restringindo este problema de maneira muito direta falando sobre as cotas e acham que as políticas afirmativas se resolvem apenas pelas cotas. As cotas são uma das formas das ações afirmativas. Mas, o que são, objetivamente falando, essas questões afirmativas? Na definição legal, elas são medidas especiais e temporárias – tem de ter essas duas características, especiais e temporárias – que devem ser determinadas por lei e podem ser tanto no âmbito federal, estadual e municipal ou também estabelecidas em planos institucionais que podem ser de diferentes instituições, empresas, enfim, diferentes entes podem propor cotas. A gente acha que elas só podem ser estipuladas pelo governo federal, não! Então, ações afirmativas são isso: medidas especiais. Porque que elas tem essa primeira definição de medidas especiais? Porque elas visam exatamente a solução de demandas ou o enfrentamento de determinados problemas que são afetos a determinados conjuntos da população. Agora, vem mais especificadamente as ações afirmativas voltadas para a população negra. Mas, no Brasil já tivemos outras experiências de utilização de cotas. Desde a década de 1930, no governo Getúlio Vargas tivemos a criação de ações afirmativas que eram voltadas, por exemplo, para que as empresas contratassem pelo menos um terço de trabalhadores nascidos no Brasil. Pois, até aquele momento as empresas preferiam contratar imigrantes do que contratar brasileiros. Então tivemos cotas neste momento, tivemos cotas em colégios agrícolas onde havia a obrigatoriedade de que cinquenta por cento das vagas fossem reservadas para filhos de agricultores. E com o passar do tempo, fomos tendo uma série de outras como, por exemplo, dispensa de licitação para as APAEs e outros órgãos que trabalham com deficientes, cotas para as mulheres nos partidos políticos para as eleições, ainda que sem a obrigatoriedade da eleição dessas mulheres, apenas a participação delas no processo político, e por aí vai. E agora, neste momento temos as politicas afirmativas voltadas para os negros, ou seja, é um entendimento do estado de que em determinados momentos, determinados setores da população, dada a sua vulnerabilidade social precisam de políticas especiais para que possam encontrar um processo de equidade no conjunto da população. E elas são sempre temporárias. Espera-se que elas atinjam seu fim dentro de determinado tempo, e isso é sempre examinado e reexaminado para saber da necessidade de sua manutenção e/ou modificação.

Lamparyna: Para que servem então essas ações afirmativas?
Ilton Cesar Martins: Servem para esses grupos historicamente marginalizados e colocados a margem das políticas públicas que não tiveram seu atendimento, quer seja na educação, no acesso à moradia, emprego, justiça e por aí vai. Então, é basicamente isto. A gente precisa entender que é essa a ideia das ações afirmativas. Em resumo, servem para eliminar desigualdades que foram historicamente acumuladas, e isso é extremamente importante frisar. Se pegamos especificadamente a população negra, pra mim soa como profundo mal caratismo das pessoas quando entendem que a sociedade é igualitária e, sendo igualitária, não há a necessidade de políticas compensatórias para determinado grupo. Claro que há ainda o desconhecimento histórico pois, qualquer mínimo que se conheça de história do Brasil nos faz perceber que o Estado brasileiro foi agente promotor da exclusão da população negra, primeiro via escravidão, depois via proibição da compra de terras, depois criação da polícia como instrumento de controle da população liberta, mais tarde proibição de negros nas escolas, dificuldade para entrar no mercado de trabalho e por aí foi. Então, achar que há igualdade entre brancos e negros ou é mal caratismo ou é profundo desconhecimento da história. Portanto, as ações afirmativas têm essa possibilidade de eliminar desigualdades historicamente acumuladas e que precisam ser reconhecidas pelo conjunto da população. Elas também vem para garantir a igualdade de tratamento pois se o artigo 5º da Constituição diz que todos são iguais perante a Lei, o artigo 3º diz que é obrigação do Estado promover a igualdade. Então, o estado brasileiro reconhece que, em um país profundamente desigual, apenas uma ação específica deste mesmo Estado seria capaz de gerar esse processo de igualdade. Assim, é o Estado brasileiro que desde de 1988 que historicamente foram geradas situações que colocaram a população negra na exclusão de acesso aos mais diferentes bens públicos e sociais. Outra coisa é que as ações afirmativas pretendem compensar perdas provocadas pela discriminação e marginalização que podem se dar por motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros. E essa compensação de perdas é muito visível na realidade brasileira decorrente basicamente de você perceber aonde está a população negra e nas condições que esta população negra se encontra na sociedade brasileira. É uma população profundante marginalizada que mora nos piores locais, estuda nas escolas com os piores índices de desenvolvimento da educação, tem dificuldade de acesso a saúde, justiça, população que mais morre em confronto com a polícia. Por isso a necessidade de compensação de perdas. Por último, as ações afirmativas podem valorizar a contribuição histórico-cultural de diferentes povos que compõe as nações. A sociedade brasileira insiste em se ver branca e portadora da cultura europeia mas, decididamente, não é o que somos. Só pessoas muito limitadas que acham que somos os correspondentes da Europa na América do Sul. Primeiro, muito me surpreende esta necessidade que as pessoas têm de se curvar, de ser reverente, de ser condescendente com a política exterminadora, criminosa que foi promovida pelo Estado europeu via Igreja Católica, via aparatos jurídicos. Então, a gente precisa conhecer esse processo de marginalização e eliminação que foi submetida a população negra, a população indígena e outros sujeitos na sociedade brasileira.

Lamparyna: É bem comum ouvirmos que o Dia da Consciência Negra e as ações afirmativas são um racismo ao contrário. O que o senhor tem a falar sobre isso?
Ilton Cesar Martins: Chama a atenção essa coisa do racismo ao contrário pois se a pessoa afirma isso, ela está reconhecendo que há o racismo e há pessoas querendo praticar o mesmo racismo. Se as cotas são racismo ao contrário, como é que a pessoa pode concordar com o racismo que excluí parte da população e não pode ser favorável a uma ação que ela chama de ao contrário que poderia combater a exclusão desse sujeito na sociedade brasileira? Novamente, eu volto na ideia de que são pessoas limitadas na compreensão da sociedade brasileira ou são mal caráter no sentido de achar que as desigualdades estão postas e tem de ser aceitas como um processo natural. Se é um processo humano, não é um processo natural. Se é um processo social, é fruto do processo desta sociedade. Então, se você opta por excluir um sujeito da sociedade porque você acha que é racismo ao contrário e você entende que este sujeito deve continuar sendo excluído da sociedade, eu acho que você deve rever seus valores éticos e morais, inclusive seus valores legais, porque a sociedade não pode ser constituída neste tipo de pensamento e atitude. A gente entende que isso aconteça menos na educação até porque a educação deveria ser o ponto de partida para o enfrentamento a respeito destas questões. Mas, infelizmente, sendo a escola uma expressão social,

Lamparyna: O que as ações afirmativas trouxeram de positivo para a sociedade brasileira?
Ilton Cesar Martins: O mais importante já aconteceu. Pela primeira vez a sociedade brasileira teve de discutir o seu racismo. Se não houvesse nada de bom pra discutir sobre as ações afirmativas, existiria esse elemento importante: a sociedade brasileira foi obrigada a pensar a sua constituição. E na sua constituição, quem são seus sujeitos constituidores e quais são as relações desta constituinte? E começou-se a perceber e a se explorar, mesmo os que são deliberadamente contra as ações afirmativas, foram obrigados a reconhecer os bons argumentos, os bons fundamentos de que a sociedade brasileira constitui um processo profundamente marginalizador da população negra. Então, é a primeira vez que a sociedade brasileira reconhece esse processo de marginalização e tem de se confrontar com ele, teve de pensar os elementos constituintes desta exclusão e marginalização e que portanto acabou dando um novo sentido para entendermos como se constituiu o Brasil, e como esse processo resultou no país que somos, um país racista, excludente, marginalizador, violento, um país que, na medida do possível, tenta silenciar, invisibilizar, quando não deliberadamente, eliminar parte da população que ele julga desnecessária ou não interessante para a constituição da sua nação. Então eu digo que é sempre extremamente importante as ações afirmativas por isso. E é óbvio que as ações afirmativas têm um papel extremamente importante pois quando pensamos nas cotas para negros nas universidades vemos que se o saber é uma relação de poder e historicamente esta população foi marginalizada das relações de saber, é lógico que ela foi submetida a relações de poder. Então, quando o negro vem pra Universidade e começa a pensar esse espaço universitário, ele está reconfigurando, redefinindo relações de poder e isso é extremamente importante. E, portanto, essas relações de poder sendo descentralizadas, ou seja, postos em outros centros, é o que definirá no futuro – não se sabe se em cem, duzentos anos, elas possam reconfigurar as relações de poder com outros centros de poder. E esses outros centros de poder talvez nos ajudem a construir uma nação justa e equilibrada com uma participação pluri-étnica, plurirracial, de igualdade de gênero e tudo mais onde possamos ter um outro país para vivermos.