Aproveitando que estamos no mês de Consciência Negra, fizemos uma entrevista sobre o assunto com um dos maiores estudiosos
sobre escravidão e sobre o negro no Brasil, o professor de História da Universidade Estadual do Paraná, Ilton Cesar Martins.
Ilton
é graduado, mestre, doutor e pós-doutor em História e trabalha no
campus da Unespar em União da Vitória.
Foto: Site VVale.com |
Lamparyna:
Professor Ilton, muito bom
conversar contigo, ainda
mais nesses dias do
mês da Consciência Negra. Me
diga, qual a importância dessas
discussões que se ampliam no mês de novembro?
Ilton
Cesar Martins: Essas discussões, esse assunto não é só
importante no mês de novembro. Na verdade, as reflexões, perguntas,
motivações sobre o negro, sobre a invisibilidade do negro no Brasil
deveriam perpassar o ano todo e não somente agora, na proximidade do
Dia da Consciência Negra.
Lamparyna:
Ouve-se bastante por aí a contestação sobre políticas
afirmativas ou cotas para negros em universidades e concursos públicos.
Muitas vezes se tem a impressão de que as pessoas nem sabem direito
do que estão falando. O senhor poderia explicar para nós o que são
de fato essas políticas afirmativas e para que servem?
Ilton
Cesar Martins: Olha, as pessoas começam muitas vezes
restringindo este problema de maneira muito direta falando sobre as
cotas e acham que as políticas afirmativas se resolvem apenas pelas
cotas. As cotas são uma das formas das ações afirmativas. Mas, o
que são, objetivamente falando, essas questões afirmativas? Na
definição legal, elas são medidas especiais e temporárias – tem
de ter essas duas características, especiais e temporárias – que
devem ser determinadas por lei e podem ser tanto no âmbito federal,
estadual e municipal ou também estabelecidas em planos
institucionais que podem ser de diferentes instituições, empresas,
enfim, diferentes entes podem propor cotas. A gente acha que elas só
podem ser estipuladas pelo governo federal, não! Então, ações
afirmativas são isso: medidas especiais. Porque que elas tem essa
primeira definição de medidas especiais? Porque elas visam
exatamente a solução de demandas ou o enfrentamento de determinados
problemas que são afetos a determinados conjuntos da população.
Agora, vem mais especificadamente as ações afirmativas voltadas
para a população negra. Mas, no Brasil já tivemos outras
experiências de utilização de cotas. Desde a década de 1930, no
governo Getúlio Vargas tivemos a criação de ações afirmativas
que eram voltadas, por exemplo, para que as empresas contratassem
pelo menos um terço de trabalhadores nascidos no Brasil. Pois, até
aquele momento as empresas preferiam contratar imigrantes do que
contratar brasileiros. Então tivemos cotas neste momento, tivemos
cotas em colégios agrícolas onde havia a obrigatoriedade de que
cinquenta por cento das vagas fossem reservadas para filhos de
agricultores. E com o passar do tempo, fomos tendo uma série de
outras como, por exemplo, dispensa de licitação para as APAEs e
outros órgãos que trabalham com deficientes, cotas para as mulheres
nos partidos políticos para as eleições, ainda que sem a
obrigatoriedade da eleição dessas mulheres, apenas a participação
delas no processo político, e por aí vai. E agora, neste momento
temos as politicas afirmativas voltadas para os negros, ou seja, é
um entendimento do estado de que em determinados momentos,
determinados setores da população, dada a sua vulnerabilidade
social precisam de políticas especiais para que possam encontrar um
processo de equidade no conjunto da população. E elas são sempre
temporárias. Espera-se que elas atinjam seu fim dentro de
determinado tempo, e isso é sempre examinado e reexaminado para
saber da necessidade de sua manutenção e/ou modificação.
Lamparyna:
Para que servem então essas
ações afirmativas?
Ilton
Cesar Martins: Servem
para esses grupos historicamente marginalizados e colocados a margem
das políticas públicas que não tiveram seu atendimento, quer seja
na educação, no
acesso à moradia,
emprego, justiça e por aí vai. Então, é basicamente isto. A gente
precisa entender que é essa a ideia das ações afirmativas. Em
resumo, servem para eliminar desigualdades que foram historicamente
acumuladas, e isso é extremamente importante frisar. Se pegamos
especificadamente a população negra, pra mim soa como profundo mal
caratismo das pessoas quando entendem que a sociedade é igualitária
e, sendo igualitária, não há a necessidade de políticas
compensatórias para determinado grupo. Claro que há ainda o
desconhecimento histórico pois, qualquer mínimo que se conheça de
história do Brasil nos faz perceber que o Estado brasileiro foi
agente promotor da exclusão da população negra, primeiro via
escravidão, depois via proibição da compra de terras, depois
criação da polícia como instrumento de controle da população
liberta, mais tarde proibição de negros nas escolas, dificuldade
para entrar no mercado de trabalho e por aí foi. Então, achar que
há igualdade entre brancos e negros ou é mal caratismo ou é
profundo desconhecimento da história. Portanto,
as ações
afirmativas têm
essa possibilidade de eliminar desigualdades historicamente
acumuladas e que precisam ser reconhecidas pelo conjunto da
população. Elas também vem para garantir a igualdade de tratamento
pois se o artigo 5º da Constituição diz que todos são iguais
perante a Lei, o artigo 3º diz que é obrigação do Estado promover
a igualdade. Então, o estado brasileiro reconhece que, em um país
profundamente desigual, apenas uma ação específica deste mesmo
Estado seria capaz de gerar esse processo de igualdade. Assim, é o
Estado brasileiro que desde de 1988 que historicamente foram geradas
situações que colocaram a população negra na exclusão de acesso
aos mais diferentes bens públicos e sociais. Outra coisa é que as
ações afirmativas pretendem compensar perdas provocadas pela
discriminação
e marginalização que podem se dar por motivos raciais, étnicos,
religiosos, de gênero e outros. E essa compensação de perdas é
muito visível na realidade brasileira decorrente basicamente de você
perceber aonde está a população negra e nas condições que esta
população negra se encontra na sociedade brasileira. É uma
população profundante
marginalizada que mora nos piores locais, estuda nas escolas com os
piores índices de desenvolvimento da educação, tem dificuldade de
acesso a saúde, justiça, população que mais morre em confronto
com a polícia. Por isso a necessidade de compensação de perdas.
Por
último, as ações afirmativas podem valorizar a contribuição
histórico-cultural
de diferentes povos que compõe as nações. A sociedade brasileira
insiste em se ver branca e portadora da cultura europeia mas,
decididamente, não é o que somos. Só pessoas muito limitadas que
acham que somos os correspondentes da Europa na América do Sul.
Primeiro,
muito me surpreende esta necessidade que
as pessoas têm
de se curvar, de ser reverente, de ser condescendente com a política
exterminadora, criminosa que foi promovida pelo Estado europeu via
Igreja Católica, via aparatos jurídicos. Então, a gente precisa
conhecer esse processo de marginalização e eliminação que foi
submetida a população negra, a população indígena e outros
sujeitos na sociedade brasileira.
Lamparyna:
É bem comum ouvirmos
que o Dia da Consciência Negra e as ações afirmativas são um
racismo ao contrário. O que o senhor tem a falar sobre isso?
Ilton
Cesar Martins: Chama
a atenção essa coisa do racismo ao contrário pois se a pessoa
afirma isso, ela está reconhecendo que há o racismo e há pessoas
querendo praticar o mesmo racismo. Se as cotas são racismo ao
contrário, como é que a pessoa pode concordar com o racismo que
excluí parte da população e não pode ser favorável a uma ação
que ela chama de ao contrário que poderia combater a exclusão desse
sujeito na sociedade brasileira? Novamente, eu volto na ideia de que
são pessoas limitadas na compreensão da sociedade brasileira ou são
mal caráter no sentido de achar que as desigualdades estão postas e
tem de ser aceitas como um processo natural. Se é um processo
humano, não é um processo natural. Se é um processo social, é
fruto do processo desta sociedade. Então, se você opta por excluir
um sujeito da sociedade porque você acha que é racismo ao contrário
e você entende que este sujeito deve continuar sendo excluído da
sociedade, eu acho que você deve rever seus valores éticos e
morais, inclusive seus valores legais, porque a sociedade não pode
ser constituída neste tipo de pensamento e atitude. A gente entende
que isso aconteça menos na educação até porque a educação
deveria ser o ponto de partida para o enfrentamento a respeito destas
questões. Mas, infelizmente, sendo a escola uma expressão social,
Lamparyna:
O que
as ações afirmativas trouxeram de positivo para a sociedade
brasileira?
Ilton
Cesar Martins: O
mais
importante já aconteceu. Pela primeira vez a sociedade brasileira
teve de discutir o seu racismo. Se não houvesse nada de bom pra
discutir sobre as ações afirmativas, existiria esse elemento
importante: a sociedade brasileira foi obrigada a pensar a sua
constituição. E na sua constituição, quem são seus sujeitos
constituidores e quais são as relações desta constituinte? E
começou-se a perceber e a se explorar, mesmo os que são
deliberadamente contra as ações afirmativas, foram obrigados a
reconhecer os bons argumentos, os bons fundamentos de que a sociedade
brasileira constitui um processo profundamente marginalizador da
população negra. Então, é a primeira vez que a sociedade
brasileira reconhece esse processo de marginalização e tem de se
confrontar com ele, teve de pensar os elementos constituintes desta
exclusão e marginalização e que portanto acabou dando um novo
sentido para entendermos como se constituiu o Brasil, e como esse
processo resultou no país que somos, um país racista, excludente,
marginalizador, violento, um país que, na medida do possível, tenta
silenciar, invisibilizar, quando não deliberadamente, eliminar parte
da população que ele julga desnecessária ou não interessante para
a constituição da sua nação.
Então
eu digo que é sempre extremamente importante as ações afirmativas
por isso. E é óbvio que as ações
afirmativas têm
um papel extremamente importante pois
quando pensamos nas cotas para negros nas universidades vemos que se
o saber é uma relação de poder e historicamente esta população
foi marginalizada das relações de saber, é lógico que ela foi
submetida a relações de
poder.
Então, quando o negro vem pra Universidade e começa a pensar esse
espaço universitário,
ele
está reconfigurando, redefinindo relações de poder e isso é
extremamente importante. E, portanto, essas relações de poder sendo
descentralizadas, ou seja, postos em outros centros, é o que
definirá no futuro – não se sabe se em cem, duzentos anos, elas
possam reconfigurar as relações de poder com outros centros de
poder. E esses outros centros de poder talvez nos ajudem a construir
uma nação justa e equilibrada com uma participação pluri-étnica,
plurirracial, de igualdade de gênero e tudo mais onde possamos ter
um outro país para vivermos.
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